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de Dacia Maraini
Roma é uma cidade que não se sabe decidir entre um luxo cosmopolita
e um míope e distraído provincialismo (…)
A distração de Roma em relação aos seus hospedes mais prestigiosos
é ao mesmo tempo escandalosa e cômica(…) E basta ler as memórias
dos viajadores dos séculos XVII e XVIII para ver como mesmo naquela
época já era assim. Goethe (…) também anotou a falta
de interesse e curiosidade pelos estrangeiros.
Existe uma espécie de desatenção elegante, uma apressada, sutil
intolerância em relação aos seus hospedes mesmo os que trazem uma preciosa
bagagem, e por bagagem entendo talento, genialidade, prestigio, vigor expressivo,
fama.(…)
…
Estes são os pensamentos que surgem em minha mente lendo o livro de
uma poeta brasileira ha muitos anos hospede da nossa cidade e que ha muitos
anos tece uma serrada rede de intercâmbio cultural entre o seu e o nosso
pais que deveria suscitar maior interesse, pois merece. Falo de Márcia
Theóphilo, que (…) hoje publica um livro de poesias (…) intitulado
"Eu canto Amazonas"(…)
Neste livro os nomes, como diz Roland Barthes, têm o valor iniciatico.
Porque os nomes têm poderes diferentes: podem fazer-nos "essêncializar
as ideias". podem dar-nos a capacidade de "citar o infinito"
e podem fazer-nos "explorar o passado". O nome é, de uma
certa maneira " a forma lingüistica da reminiscência".
Na poesia de Márcia não se encontram nomes vagos e comuns nos
quais todos podem reconhecer-se, mas nomes corposos nunca ouvidos, inconfundíveis,
longínquos, lindíssimos. São os nomes das grandes divindades
que protegem as florestas, os rios, são os nomes dos habitantes das
noites brasileiras, os nomes de gênios benignos e malignos que percorrem
ainda hoje as periferias das grandes cidades amazônicas.
Alguém poderia falar de exotismo. Mas o exotismo pressupõe um
mundo longínquo e desconhecido aureolado por desejos impossíveis.
No caso de Márcia Theóphilo está excluído porque
estes nomes pertencem-lhe por direito, são os nomes do seu universo
mnemônico, da sua vida quotidiana de brasileira em voluntário
exílio.
Mandú, Sarará, Yací, Uruparí, Ubirajara, quantos
nomes que soam como musicas desconhecidas aos nossos ouvidos! E nos lembram
que o nome, como diz Roland Barthes, é um "sinal, um sonho volumoso",
um "sinal sempre gravido" denso de significados que ninguém
pode diminuir ou banalizar.
Estes nomes que encontramos no caminho em direção do mundo da Amazonas,
têm por isto este significado de maternidade e de nutrição. Eles
suscitam no leitor, através do uso sábio das silabas e das vocais
o sentimento do ritmo e da expectativa.
Uma poesia da memória? Também. Ela nasce de uma forte memória
primitiva que conhece os fantasmas das noites sem lua e o medo do futuro,
as invocações da magia e as criaturas aéreas que moram nas orações
da madrugada, os Pixote, os Burutí, as Yanoá, os Mapinguarí
que cantam nos nosso ouvidos com a voz um pouco inquietante dos misteriosos
pássaros tropicais.
E no entanto , aproximando-nos da cidade temos s impressão que os mesmos
pássaros que ontem atemorizavam, hoje estejam eles mesmos aterrorizados…
«os buldôzers invadem, avançam.
Luzes ofuscam seus olhos
pensamentos ferozes o atravessam
Da cidade se alça um lixo fecundo,
tocam suas plumas
folhas, cartas velhas
flores de alumínio e de papel.
Desce a noite, Urutáu
escolhe o novo território
Nunca mais o eterno, viverá dia por dia.
Urutáu, pássaro disperso
o teu bosque é entre os edifícios
entre os muros de cimento, o teu ninho.»
É também um livro, este das poesias amazônicas que poderíamos
chamar das grandes modificações naturais: de pássaro a cachorro,
de jaguar a rato, de criatura da noite a desesperado habitante dos labirintos
metropolitanos, o mundo da Amazônia parece desfazer-se, desaparecer
debaixo dos nosso olhos mesmo mantendo o encanto dos próprios antigos
nomes, os únicos que sobrevivem, somente sonhos a olhos abertos:
«Iuruparí deus do sonho
os sonhos povoam nossas mentes
não são irrealidades que a nossa fantasia inventa
são concretos e tem cores
os sonhos nos aterrorizam
os sonhos nos deixam felizes
nos ensinam a viver
brincam com a gente
nos atormentam
nos mostram caminhos
Os sonhos abrem portas
e nós voamos por terras desconhecidas
Iuruparí
Iuruparí
quero voar nas asas de Iuruparí».
Dacia Maraini
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